Cultura da mentira

MentiraHá alguns meses, incentivado pelas insistências de minha esposa, decidi trocar meu aparelho de telefone celular. Das infinitas gadgets tecnológicas disponíveis atualmente, o celular sempre foi a que menos me seduziu, de modo que as tentações para substituir aparelhos antigos por outros novos nunca me foram muito persuasivas.

Por conta disso, o novo aparelho trazia uma série de novidades em relação ao outro, bem mais antigo. De todas essas novidades, a que mais despertou minha curiosidade foi uma tal de “chamada falsa”.
Não é de hoje que o telefone celular tem funcionado como válvula de escape para situações constrangedoras do dia-a-dia: uma conversa chata, uma reunião que só pode se evitada por uma razão muito honrosa, ou mesmo para passar uma falsa impressão de influência social, dentre outras. Mas não posso negar que cheguei a ficar surpreso ao ver que a indústria não só reconheceu a prática, como oficializou a legitimidade dela, ao oferecer tamanha comodidade para seu exercício. A sofisticação do recurso é tal que é possível até mesmo gravar uma falsa conversa, para que a chamada soe mais “verdadeira”. Não é sensacional? A tecnologia a serviço do “bem-estar” da humanidade.

Isso me levou a pensar no quanto nossa sociedade se tornou hipócrita. A mentira não é mais simplesmente aceita, mas é esperada, ela se tornou uma prática institucionalizada na nossa sociedade e uma ferramenta legítima na forma de se conduzir os relacionamentos interpessoais.

Mas será que isso tudo é suficiente para reconhecer a mentira como um modo de vida viável? A cultura cristã contrapõe a mentira à própria natureza de Deus, negando a possibilidade de alguém se realizar plenamente numa existência de mentiras. Mas não se trata de uma questão meramente cultural. O tema é tão recorrente, que até o ateu Sam Harris — que não se pode dizer motivado por questões de moralidade religiosa — se dispôs a escrever, sob sua ótica naturalista, um ensaio sobre os benefícios de se deixar de lado a mentira.

A verdade é que a mentira não enobrece nenhuma conduta humana. Ao contrário. Como alguém já observou, ela está sempre associada a outras práticas recriminadas pela sociedade, como adultérios, roubos, fraudes, conveniências, abusos e explorações. Não há como a mentira ser enobrecedora levando-se em conta os interesses por detrás de suas consequências últimas.

Mesmo assim, alguns argumentos têm aparecido para justificar a prática da mentira. Um dos mais usados é aquele que atribui a ela uma espécie de função “terapêutica”, fundamental para a boa fluidez das relações humanas. Mentir seria necessário para aliviar a dor da verdade que muitos não suportariam. Na variação deste argumento, a mentira seria seria um mal menor, autorizado para evitar um mal maior.

O que não apareceu ainda é quem fique contente em se descobrir enganado por mentiras.

Hamilton Furtado

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3 comentários sobre “Cultura da mentira

  1. ops, achei que só eu era “resistente” ao novo! risos! (digo qto ao q disse sobre trocar o aparelho). vou publicar aqui no SEU blog, que temos 7 anos de amizade e nunca nos falamos ao celular. que coisa, hein??!

    mentira me enoja. bom texto. como sempre.
    R.

  2. “…sempre seja Deus verdadeiro, e todo o homem mentiroso; como está escrito: Para que sejas justificado em tuas palavras, E venças quando fores julgado” (Romanos 3:4). 

  3. A mentira sempre será negativa, nao importa, ainda que seja para mascarar certas situaçoes constrangedoras ou certos males. Quando a mentira é usada para mascarar algo que seria “ruim”, ela mesma já provém de um comportamento negativo.  

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